quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Post linguado


"A verdadeira riqueza de um povo está na sua gramática."
Fernando Pessoa

Inspirado pelo parto feliz de dois bebés blogues (It's Bliss | A MaFia Feminina), de duas assíduas passageiras do Autocarro, decidi forçar o regresso da escrita a este espaço. Não tinha nada de mais sobre que escrever de momento, mas tinha algumas ideias na gaveta, esperando o vislumbre do teclado. Atendendo ao motivo que me levou a querer antecipar o novo post, achei que um bom tema seria justamente... a escrita. E, sim, uma das ideias na gaveta tinha a ver com este tema.

Comecei com uma citação de Fernando Pessoa. Epá, que o homem era louco já todos sabemos de ginjeira. Mas afirmar que a riqueza de um povo está na sua gramática... Desde quando é que botar faladura nos enriquece? Empobrece os pulmões e, em muitos casos, a reputação social do emissor. Creio, aliás, que a segunda parte é o que me está a acontecer neste momento. Convenhamos também que esta é uma citação que revela bem o pessimismo de Pessoa em relação ao seu país. Certamente foi escrita na sua fase decadentista, em que só falava de coisas tristes e a alma lhe doía (ainda mais do que o normal) constantemente. De facto, dizer que a riqueza de um povo está na sua gramática é passar um atestado de pobreza a Portugal. Vá lá, Fernando... Eu sei que passaste a infãncia na África do Sul, o que te fez perceber desde menino os atrasos de Portugal, mas também... não somos assim tão maus. Não era preciso fazeres passar a imagem de que somos pobres.

Reparo, ainda, que esta definição de Pessoa entra um bocado (só um bocado) em conflito com as definições do "Pai da Economia" Adam Smith, na sua obra-prima An Enquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations (Inquérito sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações). Há quem prefira, por motivos que me são perfeitamente ocultos, chamar-lhe apenas A Riqueza das Nações. Mas reparo que há, de facto, divergências entre Pessoa e Smith na definição de riqueza - divergências aos meus olhos inexplicáveis. Ok, é certo que, em termos actuais, um seria o que hoje se pode chamar um emo-hippy-nerd (que combinação genial) e o outro um queque, apesar das suas mui viris origens de pastor. Não sei se terá algo a ver com isso. Mas continuo a achar estranho. Desde quando é que um economista e um poeta/um artista têm visões diferentes do mundo? O Manuel Alegre até ajudou o Cavaco Silva a ganhar as últimas presidenciais logo à 1ª volta, ao dividir o PS, e tudo...

Mas o efeito que a citação de Pessoa teve em mim foi o de me fazer reflectir sobre a escrita e a língua. E concluí que Fernando Pessoa, se ambicionava defender e sensibilizar para a importância da correcção gramatical e da erudição linguística como parece querer fazer na dita citação, disse uma parvoíce de todo o tamanho. Deixa lá, Nando, acontece a qualquer génio. Não é preciso escreveres dez poemas tristes sobre isso. Vá lá, não comeces com essa cantiga do choro perfurante da alma. Vamos afogar essa alma mas é com umas bejolas ali n' O Martinho da Arcada.

Afinal o que é, então, "língua"? Além de "órgão móvel da cavidade bucal" (deixemos de parte definições de cientista), "língua" é um "sistema de comunicação comum a uma comunidade linguística". Eu deturparia um pouco esta definição e diria que é uma maneira de as pessoas se entenderem entre si. Vá, talvez esta não seja a definição, mas sim a finalidade da língua: o entendimento mútuo.

Daí que Pessoa tenha dito uma parvoíce de grandes proporções. Mas quem era ele para dizer aquilo, se ninguém percebia pitada do que ele queria dizer? Ou, usando uma expressão - lá está - mais acessível: ninguém percebia um corno das papaias que ele para ali mandava naquelas rabichices, os poemas ou lá ó raio que era.

De facto, Pessoa era um sem-abrigo em termos linguísticos, de acordo com a sua própria teoria da riqueza (quão altruísta da parte dele). O que se pode chamar de Belmiro de Azevedo é o Hi5 e sítios afins onde toda a gente se entende: isso sim, é uma língua. Rendo-me à superioridade da linguagem Hi5. Confesso que já ambicionei vezes múltiplas converter-me a tal dialecto, mas tenho de reconhecer: sou um incapacitado. O melhor que já consegui aprender foi duas palavras homónimas, das tais que se lêem e escrevem da mesma maneira, mas têm significados diferentes. Passo a partilhar a minha aprendizagem:

a) "tou c 1a comixão ka num xitio k eu ka xei k n m aguentu"
b) "ja dei a minha xugestão a comixão d praxes"

Reparem na palavra "comixão", aplicada na frase a) na sua dimensão semântica de "sensação incómoda", "prurido" e na frase b) como "aglomerado de pessoas com funções de decisão, gestão ou estudo". Até pareço estar no bom caminho, mas a verdade é que as minhas capacidades não passam disto. Serei um pobre linguístico para sempre.

Repare-se ainda que agora existem as "Moedas Hi5", com as quais podemos adquirir artigos tão fenomenais como um "saco de cocó em chamas" ou um "furão com balões" (o primeiro existe mesmo, o segundo inventei-o, mas, se não existe, vai existir em breve). Uma clara tentativa de, na linha da citação de Pessoa, introduzir moeda/riqueza num contexto linguístico.

Posto isto, exorto todos a dar ao português "diferentemente" falado e escrito (há quem diga mal falado e escrito... Preconceituosos, digo eu!) e à linguagem Hi5 (o caso mais... especial do português diferentemente falado e escrito) o valor que merecem. Porque essas sim, são línguas a sério, inteligíveis pela larga percentagem das pessoas. Por algum motivo o Hi5 tem milhões de utilizadores e o Autocarro menos de meia dúzia de crentes... Já pensaram nisso? Porque outro motivo haveria este blogue de ser menos popular do que o Hi5?...

Espero ainda que um dia se leia na escola os comentários trocados entre o Xefe Djjioguinhuu e a JúLiÁnNáÁZóúÚúNaÁh no Hi5 em vez dos poemas de Fernando Pessoa. Verdadeiros artífices da linguagem e da gramática.

Que as ilustrações sejam os cartazes a informar que "À caracóis" ou que "Vêndesse melões". Que os partidos políticos sejam "krews". Bem, isso de certa maneira já são, visto que "krew" é um termo associado a um grupo de pessoas que, por vezes, executa actividades de legalidade duvidosa.

Bjx ffx a tdx. ***

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

A carga pronta e metida nos contentores


Vem aí mais um ano escolar. E, claro, o Autocarro não podia ficar indiferente. Pelo menos até dia 27 de Setembro, felizmente temos uma ministra que faz da educação um tema apetecível para as conversas de autocarro. Uma ministra que, sempre revelando grandeza de espírito e a "delicadeza" preconizada por Sócrates, vem afagar as mágoas dos pais e professores que pensam que os seus filhos/alunos são uma carga de trabalhos... Eis que a ministra vem dizer que, para o Ministério, os jovens são mesmo uma carga. É verdade. Este ano, em parceria com Mário Lino, Milú presenteia-nos com escolas pré-fabricadas. Há escolas no percurso do Autocarro, por isso já todos devem ter reparado na invasão de contentores pré-fabricados que se multiplica por muitas das escolas do país. E não, não servem apenas para embelezar o recinto escolar. Eu sei, eu sei, são um ornamento de sonho. Mas, acreditem ou não, esse não é o propósito essencial deles. Na verdade, é ali que vão ser dadas as aulas.

A justificação mais recorrente para este choque tecnológico nas escolas prende-se com a falta de condições das mesmas. Sobrelotação e problemas na canalização são as falhas mais apontadas. Eu tenho cá para mim que tudo não passa de uma manobra de marketing. Metem-se os contentores à pazada para dentro das escolas, dão-se as aulas lá dentro... Tudo para atrair alunos para as Novas Oportunidades! É marketing no seu estado mais puro e genial. Mas alguém acha que a Milú é estúpida ou quê? Tudo está previamente pensado. Sabendo-se que uma boa parte do target das Novas Oportunidades se encontra no ramo da construção civil, toca a fazer as escolas mais acolhedoras e atractivas para esse mesmo target. E nada mais acolhedor do que um desses contentores habitualmente vistos nas obras. Os das escolas só pecam por estar (por enquanto) muito asseados. O Zé Ramos, que me costuma fazer umas reparações em casa, não gostava muito da escola, ficou-se pelo 9º ano e tem prazer em trabalhar na construção. Mas se agora a escola é fazer o 12º num punhado de meses com aulas num contentor pré-fabricado... Bem, isso muda tudo. Só falta o calendário da Pirelli numa das paredes do contentor para ser perfeito.

Por outro lado, gera-se uma concorrência atroz no que toca a quem trabalha num contentor pré-fabricado. O agente imobiliário pensava ter o monopólio da venda, num pré-fabricado desses, de coisas a preços mais altos do que as pessoas estão dispostas a pagar. Mas agora chegam os professores. Ambos tentam vender o seu peixe, com baixa probabilidade de sucesso.

Mas voltando ao tópico das más condições das escolas. Convenhamos que, com os contentores, há, sem dúvida, melhores condições. De facto, é um mimo ter aulas em contentores que anulam todo o espaço exterior que pudesse existir para recreio ou mesmo estacionamento. No entanto, há potenciais problemas de saúde que subsistem (não obstante as evidentes melhorias das canalizações que o uso dos contentores permite): por exemplo, os produtores e vendedores destes contentores terão o seu recto exposto a tintas potencialmente perigosas, ao limparem o mesmo a notas das mais diversas quantias de euros - coisa que certamente não perderão a oportunidade de fazer, afinal de contas nem tão cedo se volta a conseguir um negócio destes. Ainda por cima o dinheiro dos contribuintes tem algo particularmente especial e chamativo, que ninguém consegue explicar. Uma oportunidade a não perder, de facto.

Entretanto, as escolas, algumas com idade, traços arquitectónicos, locais interiores e exteriores dignos de património, que contam histórias sem fim, são fortemente remodeladas... por causa das canalizações, que só contam histórias de merda... literalmente. Não negando a importância da qualidade nas canalizações, convenhamos que não deixa de ser duvidoso se toda esta parafernália pré-fabricada se justificará mesmo...

Mas nem tudo é mau. Se já temos um "plano nacional para a matemática", os contentores são, por sua vez, uma grande oportunidade para os alunos de Artes (e não só...) expressarem essa força criativa que guardam dentro de si e que sempre anseiam por libertar. Aquelas paredes branquinhas, ainda por cima postas em escolas, estão mesmo a pedir uns graffiti. Mas alguém acha que a Milú é estúpida ou quê? Tudo está previamente pensado. Até os professores hão-de fazer uma perninha, transformando algumas dessas paredes em verdadeiros quadros transbordantes de admiração por personalidades como a sua própria patroa, a nunca raras vezes mencionada Milú. Será difícil conter tanto afecto.

Compreende-se porque é que não se optou por uma solução como fazer as obras em simultâneo com a actividade escolar, apesar de ser mais barato e ser provavelmente menos constrangedor para a comunidade escolar, apesar dos inconvenientes. Havia esse perigo horroroso de os alunos conviverem com profissões como trolha ou canalizador. Os alunos terem sequer o mínimo pensamento de seguir uma profissão dessas - das que toda a gente goza nas conversas com amigos, e que terminam sempre com o reconhecimento geral de que, sem esses profissionais, a sociedade não funcionava - é algo que entra nos sonhos mais atemorizantes dos nossos não menos atemorizantes governantes. Seria terrível se estes pequenos génios (que são todos génios, sem excepção) pensassem sequer em desperdiçar toda a sua capacidade intelectual (que todos têm elevadíssima, sem excepção) numa profissão daquelas. Os contentores vêm, portanto, matar dois coelhos de uma cajadada: 1) ao evitar-se a simultaneidade das obras e das aulas, não há misturas entre os "menos qualificados", esses seres viscosos e claramente inferiores, e os alunos de hoje, que têm de ser os doutores de amanhã (quando digo amanhã, praticamente é mesmo amanhã, pelo meio das Novas Oportunidades e essas coisas...); 2) os contentores impedem o crescimento de ervas, evitando o actualmente inevitável chamar de um outro tipo de ser viscoso, o "menos qualificado" jardineiro. Mais ainda, tudo isto é também uma maneira de atrair estes ainda "menos qualificados" para as escolas e as suas Novas Oportunidades, trazendo-os para essa sagrada luz das habilitações. Volto a dizer: uma brilhante manobra de marketing, de fazer inveja a qualquer Super Bock ou Coca Cola. Aposto que até vão fazer uma caça ao tesouro nas canalizações para os canalizadores, onde, por acidente, surgem vários panfletos reluzentes e fluorescentes das Novas Oportunidades. E tudo isto sem pôr em perigo as jovens cabeças dos alunos, postos em quarentena em pré-fabricados para evitar que se desviem do caminho divino.

Mais ainda: qualquer olhar perspicaz vê que isto se enquadra na perfeição no Choque Tecnológico. Vindo deste governo, só uma vista incauta pode esperar que estes contentores sejam uns barracões. Por dentro, certamente são pequenos centros de alta tecnologia: Magalhães para todos, quadros interactivos, uma Bimby a varrer as aparas dos lápis dos alunos mais famintos por sabedoria, a tal ponto que nem querem perder tempo a ir ao caixote do lixo e afiam os lápis mesmo na carteira, por muito que lhes doa na alma sujar o chão... Ah, e a varrer também os aviões de papel que vão sendo atirados... Esperem. Algo está mal... Aviões de papel? Que estupidez, já não há disso, agora joga-se Batalha Naval em rede pelos Magalhães. E os mais jovens jogam Counter Strike. Bem, seja como for, claramente que estes aparentemente miseráveis contentores escondem o Choque Tecnológico na sua génese mais pura. Mas alguém acha que a Milú é estúpida ou quê? Tudo está previamente pensado.

Aaah, Milú, Milú... Sempre a surpreender-nos com este humor de fino recorte. E tu também, Zé. Fazer o choque tecnológico num contentor pré-fabricado é algo que não lembraria nem aos Monty Python. Mas tem a sua lógica. Enquadra-se no sonho do Portugal futuro que alguns têm: incapacidade para raciocinar, criar e construir; obter tudo pré-fabricado. E são as gerações vindouras a carga destes contentores. Em Alcântara, já se quer triplicar a capacidade para os guardar...