Hoje vinha no Autocarro um indivíduo que tinha acabado de chegar de Braga. Um qualquer coisa Fernandes, creio. Pareceu-me ouvir Zé.
Aparentemente, o Zé estava escandalizado com o episódio de "censura" que em tais terras minhotas tinha ocorrido. Os caros passageiros, como gente inteligente que são (estão a ler este blogue) certamente já estão a par da situação. A PSP apreendeu alguns exemplares do livro "Pornocracia", de Christine Breillat, por ter recebido queixas de que o conteúdo da capa do mesmo seria pornográfico (trata-se do quadro "A Origem do Mundo", de Gustave Courbet). Para quem tenha prescindido dos meios de comunicação social (como vos compreendo, meus amigos) e desconheça este caso, fica aqui um link da notícia:
http://ultimahora.publico.clix.pt/noticia.aspx?id=1366440&idCanal=62 (Aviso importante: conteúdo gráfico passível de ferir susceptibilidades)
O amigo dele (creio que também se chamava Zé, por acaso, mas chamá-lo-ei "Amigo"), vestido com uma grande túnica roxa, dizia-lhe que, por muito que também apreciasse umas boas e roliças coxas e por muito aborrecido que fosse, devíamos respeitar as pessoas mais impressionáveis. E agora vou passar a transcrever em discurso directo o debate que entre eles decorreu, que eu sou só um motorista, não tenho nada que saber fazer narrações em discurso indirecto.
Zé: "Então pá, mas a ideia é mesmo chocar, como forma de atrair a atenção das pessoas e mudar-lhes a mentalidade!"
Amigo: "Então porque é que não te despes e vais ali para o varão dançar para chamar a atenção dos passageiros que aqui estão e pregar-lhes as tuas ideias?... Ah, pois... Não resultava porque eles iam virar a cara e a tua ideia tinha o efeito oposto ao desejado."
Zé: "Não sejas assim, pá. Mas aquilo é uma obra de arte reconhecida, de um reconhecido artista francês. E de qualquer modo, isto é censura à moda antiga, onde está a liberdade de expressão?"
E aqui a minha mente divagou e não ouvi mais nada. Comecei a pensar em quão delicioso seria poder conduzir nu este autocarro, com o suave sopro da Natureza a acariciar os recantos mais obscuros da minha anatomia. Epá, esta coisa da liberdade de expressão é mesmo um espectáculo. E tal como o Gustave Courbet e sua Origem do Mundo, também eu considero certas partes minhas geralmente ocultas pelo uniforme verdadeiras obras de arte, o que me faz estar ainda mais desculpado por guiar nu um transporte público. Certamente que a Cláudia Vieira é mais escultural, mas bem... Quem é o Gustave Courbet afinal? Digamos que a Cláudia é o van Gogh e eu o Courbet. Se o Courbet pode considerar-se arte, porque não eu?
Mas depois ecoou a voz do amigo do Zé na minha cabeça, que dizia que devíamos respeitar as pessoas impressionáveis. Ainda por cima essas são geralmente pessoas de alguma idade, um segmento importante da população para os transportes públicos. Será que realmente teria menos gente no autocarro se o conduzisse nu? Prefiro não arriscar, de facto. A coisa está a correr bem como está agora. E pensando bem, trabalhar nu é uma ambição luxuriosa que almejo, mas se estiver vestido também não é mau, sou feliz assim. Não custa nada respeitar as susceptibilidades de alguns, por muito frustrantes que sejam para nós. Para quê teimar? Podemos sempre dar-nos a estes pequenos prazeres na nossa privacidade, onde não ferimos nada nem ninguém.
Ainda ouvi o amigo do Zé dizer-lhe que a liberdade é um dom, sim, mas que não deve ser confundida com libertinagem e leviandade, ainda que todas as palavras começassem por L e fossem polissílabas. E que com a liberdade vem a responsabilidade.
"Porra, pá! Já estás a falar caro de mais para mim. Pensas que eu leio o dicionário da Academia de Ciências ou quê? Olha, compra mas é o livro de bolso do acordo ortográfico, que no Brasil não há cá dessas mariquices caras e além disso ficas atualizado, sem "c". E além do mais, já não fazes figuras tristes nem me envergonhas à frente das minhas amigas, e até já podes falar com elas no mesmo dialecto. Dialeto, desculpa.", concluiu o Zé. E saíram do autocarro. Ou será ônibus?
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